Textos

Texto de Inês Grosso, integrante da equipe curatorial do Instituto Inhotim:

Fardo de Aarão, 2013

Fardos de materiais recicláveis diversos, intervencionados por artistas locais

Projeção de vídeo digital em loop sem som

15 de Abril de 2013, à porta de um depósito de reciclagem no Carlos Prates, numa ação a que não falta um toque de humor, um homem anônimo destrói sem hesitar um fardo de papelão. Assim, inicia Fardo de Aarão, projeto artístico de Warley Desali + Froiid K (em colaboração com Daniel Toledo) realizado especificamente para este ciclo de intervenções temporárias no Teatro Espanca.

Tomando como ponto de partida a ideia de um cubo reinventado, os artistas dão continuidade à reflexão crítica sobre o alcance do mercado na construção social do valor artístico, validação da obra e midiatização dos autores.

Apropriando-se dos processos tradicionalmente associados ao tratamento de materiais recicláveis e direcionando-os para o contexto e práticas artísticas contemporâneas, a proposta de Warley Desali + Froiid K e Daniel Toledo¹ desdobra-se em diversas ações que privilegiam uma espécie de work in pro-gress, um dinamismo processual, assim como está em processo a Galeria Piolho Nababo que os une desde 2010.

Num primeiro momento fardos cúbicos de papel foram estrategicamente esquecidos em distintos locais da Avenida do Contorno² construindo pequenas ficções cósmicas com desfechos acidentais. O que podem parecer instantes banais facilmente captados pela câmara de vídeo, são situações encenadas que acompanham o destino de cada embrulho revestido com tinta branca (o fim da supremacia do cubo branco?). No decurso destes dias que antecederam a abertura da mostra, e durante a mesma, esses volumes prensados e amarrados são entregues a artistas locais como telas em branco ou paredes vazias de uma galeria. Na noite do último dia, cubos com assinaturas, intervencionados por artistas e, por isso, transformados em objetos de valor, serão leiloados em simultâneo com outros de participantes desconhecidos.

Aí se distingue uma aposta deliberadamente crítica à dimensão especulativa que a arte tem atualmente, através da desconstrução de polêmicas relacionadas com as grandes leiloeiras em torno da autenticidade de obras de arte. Pensamos nos leilões e em suas controvérsias, por exemplo, quando vem a público que uma pintura arrematada por uma cifra astronômica foi executada não pelo mestre, mas pelo discípulo, ou ainda nas falsificações que passam pela avaliação dos comitês de peritos.

Cabe aqui contextualizar a atividade desenvolvida pelos artistas com a Galeria em Processo Piolho Nababo, que há cerca de três anos realiza leilões em espaços independentes de Belo Horizonte. Uma galeria sem endereço fixo que organiza vendas públicas de seu acervo, constituído majoritariamente por artistas em fase ascensional, permitindo-nos seguir os valores mais jovens da cidade.

Recusando a prática de seleção de obras e qualquer argumento curatorial, a Piolho Nababo entrega a cada artista um martelo, pregos e a liberdade para pendurar o seu trabalho sem restrições ou limitações, ocupando de modo aleatório paredes, teto e portas. O leilão converteu-se em um dispositivo artístico que, situado entre a performance e a instalação, atende a ideia de democratização da arte, tanto do contato, como da compra (lembremos que os leilões permitem a realização de bons negócios, e são, por isso, acessíveis a vários tipos de público). Os artistas propõem a reavaliação de uma das principais premissas do mercado artístico e norteadora de suas tendências: o preço enquanto regulador de um suposto valor artístico e o valor estético, por sua vez, estabelecido em função do preço. Em Fardo de Aarão, cada cubo será pesado e o preço do quilo de seu material determinará o lance inicial de cada lote.

Conhecidos pelo uso da pintura como suporte para a construção de discursos ambíguos e fragmentados que resgatam a figuração dos quadrinhos underground, sobrepostos com humor e ironia a colagens de recortes e páginas de livros com referências políticas e populares, Warley Desali e Froiid K mostram que a vontade de fazer arte sobressai ao lucro, rejeitando, por isso, a preocupação em vender obras a valores altos como forma de legitimação da produção. A cada batida do martelo do leiloeiro, teatralizado por Daniel Toledo, uma disputa de compradores chega ao fim. As obras que não forem vendidas serão destruídas.

¹ Warley Desali nasceu em Belo Horizonte em 1983. Froiid K nasceu em Belo Horizonte em 1986. Daniel Toledo é jornalista, ator, diretor e roteirista que conduz o leilão da galeria em processo Piolho Nababo.

² Avenida do Contorno, projetada por Aarão Reis (Belém PA 1853 – Rio de Janeiro RJ 1936). Em outubro de 1924 a rua onde se encontra o espaço que o Teatro Espanca ocupou, recebeu o nome do engenheiro e urbanista paraense, responsável pela construção da nova capital de Minas.

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Texto de Adriano Gomide, Master of Fine Arts por The School Of The Art Institute Of Chicago (1998), professor e pesquisador da Escola Guignard (Universidade do Estado de Minas Gerais):

Exposição Alicerce (Pinturas e objetos de Warley Desali)

Warley pinta o que está ao seu redor: seus amigos, a casa em que morou, o ponto final do ônibus 4402, o bairro no qual passou sua infância, a escola aonde estudou, os interiores de casas que freqüentou e que ainda freqüenta, as ruas por onde circulou e ainda circula e por aí vai.


São pinturas que estão no meio do caminho entre a brutalidade preconizada por Jean Dubuffet – para quem a recusa da tradição na arte era quase um imperativo para se ter acesso à verdadeira criação (daí sua predileção pela arte dos loucos, dos autodidatas, dos outsiders e dos isolados culturalmente) – e uma busca pela inserção nos circuitos mais tradicionais da arte, como museus e galerias.


Nas pinturas de Warley, parte da recusa da tradição está no próprio uso dos materiais tradicionais como a tela para pintar. O artista usa pequenos painéis de madeira que são confeccionados por ele mesmo a partir de tábuas aproveitadas de caixas usadas para o transporte de frutas e legumes. O suporte não cessa de se evidenciar – com a textura própria da madeira com seus veios e sinais da serra que a dividiu em perfis. Como também não cessa de se evidenciar a superfície da pintura com sua textura áspera e incrustada de resíduos. Em E. M. Glória Marques, uma referência à Escola Municipal onde o artista estudou, temos a representação de uma mesa e de uma banqueta escolares. Pairando sobre elas a imagem de um grande pássaro que pode tanto estar caindo ou, subvertendo o espaço perspectivo do quadro, pode ter sido representado já caído no chão em meio a uma poça de sangue. Poça que reencontramos em Corpo amigo onde vemos a representação de um rapaz usando uma jaqueta do tipo militar de campanha camuflada e um boné branco. No lugar do rosto uma grande mancha vermelha que se espalha. Essa violência aparece em vários outros trabalhos, como na pequena montagem Pauma pauma não priemos panico (sic). Os dizeres que remetem à fala ingênua do personagem Chapolin Colorado – um super herói latino que surgiu na TV mexicana na década de 70 – aparecem associados a um boneco do personagem de desenhos infantis Bob Esponja Calça Quadrada que segura em sua mão direita uma miniatura de uma metralhadora de plástico e na sua mão esquerda um cachimbo usado para se fumar crack.


Há inegavelmente um aspecto expressionista nas obras de Warley, com suas distorções das formas observadas, o uso de cores primárias e os gestos pictóricos imprecisos. O artista parece atacar brutalmente as formas e as superfícies com seus instrumentos de trabalho, mas apesar dessa brutalidade (palavra que aparece gravada a fogo em uma de suas assemblages) os trabalhos ainda guardam uma certa ingenuidade, um certo lirismo, observados no uso de figurinhas de plástico de desenhos animados e de brinquedos – afinal uma “metralhadorazinha” de plástico nunca dará tiro algum – ou nas pinturas com cenas de interior, como em Terra vermelha, com sua mesa e objetos todos brancos ressaltados por uma parede escura e um piso avermelhado; ou na xícara vermelha com sua sombra negra projetada de Que nos esconde. Em algumas de suas pinturas mais recentes como em Dona Mercês (sic) e Terraço rosa, céu azul temos alguns ecos das pinturas de Lorenzato, com suas texturas marcadas e tratamento naif da cor e da composição.


Não poderia encerrar um texto sobre o trabalho de Desali sem falar na sua ação como artista com suas pinturas na rua, suas marcas no espaço público e nas exposições e leilões que ele promove com seu amigo Froid. Ao invés de pensar nesta atividade pelo lado da crítica ao sistema já estabelecido, prefiro pensá-la como novas alternativas para artistas que estão iniciando suas carreiras. Novos artistas pedem novas maneiras de se mostrar arte, novas maneiras de circulação e comercialização que acabarão atraindo novos públicos, novos colecionadores e novos apreciadores.

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Texto de Affonso Uchoa, cineasta, diretor dos longas Vizinhança do Tigre, Arábia e Mulher à Tarde:

Exposição Vista-me enquanto não envelheço, de Warley Desali

A exposição vista-me enquanto não envelheço apresenta uma amostragem geral da trajetória fotográfica de Warley Desali. Desde o início de seu trabalho, em que havia maior afeição ao preto e branco e à manipulação em laboratório, até as obras mais recentes, que enveredam pela apropriação de imagens e flerte com o desenho.

Desali é um artista que mescla o realismo e o artifício. Retira de suas figuras, rostos e espaços fotografados a sua face mais real e crua, porém, sempre através de um gesto construtivo, que revele a operação da montagem do efeito. Desali não vira as costas pra realidades marginais; ao contrário, as enlaça num abraço fraternal. Ele olha os pobres, a periferia, os jovens skatistas de subúrbio, as putas e os mortos e deles retira a matéria-prima vital para sua criação. Suas fotografias oscilam do rigoroso pictorialismo a energia juvenil, quase desleixada, porém sempre atencioso ao que é imperfeito e ensombreado pelo senso comum. As fotografias de Desali escavam o solo ar(g)(d)iloso da sociedade e, da terra negra do esquecimento, retira sempre um rubi cravejado de vermelho sangue.

Nessa exposição as fotografias que compõem a obra de Warley Desali se dividem em algumas série e, através da passagem por elas, poderemos notar a evolução e a multiplicidade do seu trabalho. As séries “Bom Jesus” e “Caiapós, homem semelhante” se juntam a fotografia “jovem artista sobre fundo infinito” compondo a primeira fase do trabalho fotográfico de Warley Desali. São fotos marcadas pela tecnologia analógica e pelo preto e branco. Enquanto “fundo infinito” revela o experimentalismo com o processo da revelação, através da manipulação dos químicos e incisões diretas no papel fotográfico, as duas outras séries mostram Desali em sua habitual natural, espécie de aldeia lírica da sua obra, os bairros periféricos. São duas séries marcadas pelo pictorialismo e pelo teatro. São poses encenadas, enquadradas através de uma imagem composta com rigor. As duas séries são profanas derivações da iconografia cristã; se aproveitam da forma dos santinhos e estandartes religiosos para representar jovens garotos suburbanos. O sagrado ante a lente de Desali é o mundano e o que lhe é mais próximo.

A série “retorno pela sombra” é marcada pela montagem: são fotografias associadas. Dois tipos de fotos: imagens de desenhos formados com lixos, pedras e elementos urbanos junto a fotografias de pedaços de roupas sujas largadas ao chão. As próprias fotografias dos desenhos guardam sua montagem, pois trazem algumas inscrições textuais (pequenas biografias e obituários) grafadas a arranhões na sua superfície. Da junção das fotos vem o sentido: os desenhos que formam rostos impossíveis a ilustrar vidas que se foram são montados com pedaços de roupa abandonados. Pode-se lembrar do Bernardo Soares de “Livro do Desassossego” a comparar a sua (e nossa) existência ao trapo úmido dependurado na janela em frente, mas pode-se pensar que a vida (as biografias rasgadas no gilete) é, mais que a morte do pano rasgado, justo o vento que o carrega.

Por fim, a exposição ainda exibe as séries “Cidade industrial” e “Doce sonâmbulo”. “Cidade Industrial” é formada por fotografias ilustrando situações de férias e viagens que foram apropriadas por Desali, e montadas de modo a constituírem um fio imaginário de memória. “Doce sonâmbulo” exibe um híbrido entre a figuração da paisagem periférica do bairro Nacional e da paisagem metropolitana de Belo Horizonte, unidas por um mesmo olhar e pela textura e formato de quadro da câmera Olympus-pen. Nessa série a atenção está depositada no corpo e no detalhe. Objetos cotidianos que ganham dimensão e magnitude junto aos corpos jovens capturados com leveza e rapidez.

Desali é do tipo de artista para quem o pensamento é antes de tudo um gesto e a política é sobretudo um olhar. Flaneur das quebradas ou cocote das tretas, Desali não foge da raia e, diante do monstro a quem os cordatos viram as costas, puxa a câmera e devolve o olhar com a navalha em forma de lente. O resultado é uma imagem que não domestica quem a olha e sim revolve o espectador veia a veia. A obra de Desali é um antídoto a aridez usual da arte contemporânea, que, por vezes, suga a vitalidade da criação artística até reduzí-la a desidratação de uma tese ou um teorema. Fotografar com o coração do tamanho de um boi, mesmo que ele caiba dentro do punho, e bata no pulso de quem saca da câmera e, tal qual num faroeste, não hesita nem por um segundo.

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